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O tratamento multidisciplinar precoce e a garantia da autonomia

A efetivação dos direitos das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Brasil configura-se como um dos mais graves desafios na intersecção entre saúde pública, direitos humanos e justiça social. A Lei nº 12.764/2012, conhecida como Lei Berenice Piana, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA, estabelece de forma clara o direito a um atendimento integral e multidisciplinar, contínuo em todas as fases da vida, com especificação da obrigatoriedade de terapias como fonoaudiologia, psicologia e terapia ocupacional. No entanto, a realidade brasileira apresenta um cenário preocupante, onde milhares de famílias enfrentam filas indefinidas no Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto o período crítico de desenvolvimento infantil, compreendido entre 0 e 6 anos, vai se esgotando progressivamente. Essa demora no atendimento agrava déficits que poderiam ser significativamente mitigados com uma intervenção precoce e adequada.

Especialistas renomados, como Dr. Lucelmo e Dr. Paulo, ressaltam que o autismo demanda estimulação precoce para o desenvolvimento de habilidades basais – comunicação, interação social e regulação sensorial – que não são adquiridas espontaneamente e servem como alicerce para competências mais complexas. A neurociência comprova que a plasticidade cerebral nesta fase permite adaptações significativas, porém a demora no tratamento acarreta consequências irreversíveis. Crianças não estimuladas adequadamente tendem a desenvolver dependência permanente em atividades cotidianas básicas, como higiene pessoal e alimentação, sobrecarregando tanto as famílias quanto o Estado. Além disso, a falta de suporte multidisciplinar adequado cria barreiras educacionais que prejudicam a inclusão escolar e perpetuam ciclos de exclusão social. Outro aspecto grave é o agravamento de comorbidades, pois comportamentos disruptivos e transtornos associados, como ansiedade, intensificam-se na ausência de terapia adequada.

Pesquisas demonstram de forma contundente que cada ano de atraso no tratamento reduz em até 30% as chances de independência na vida adulta, conforme dados do Instituto Nacional de Saúde dos EUA. No contexto brasileiro, onde aproximadamente 70% dos municípios não oferecem terapias em quantidade suficiente, conforme apontado pela Cartilha da Autismo & Realidade, essa omissão estatal condena gerações inteiras a um futuro marcado pela vulnerabilidade e exclusão social.

A negligência do Poder Público em garantir esses direitos fundamentais viola não apenas a Lei Berenice Piana, mas também dispositivos constitucionais e legais de extrema importância. A Constituição Federal, em seu Artigo 196, garante a saúde como direito universal e dever do Estado. O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) assegura prioridade absoluta no atendimento, enquanto a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, internalizada no ordenamento jurídico brasileiro com status constitucional pelo Decreto nº 6.949/2009, reforça esses direitos fundamentais.

O Poder Judiciário tem se manifestado de forma consistente sobre o tema, com decisões unânimes que condenam municípios e estados a fornecerem tratamentos sem filas de espera. Um exemplo emblemático é o REsp 1.881.421/SC julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, que garantiu o direito a acompanhante terapêutico escolar. Da mesma forma, diversos mandados de segurança têm obtido êxito em assegurar o início imediato de terapias, muitas vezes em prazo inferior a 72 horas. O Ministério Público, por sua vez, tem atuado de forma incisiva por meio de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), pressionando os gestores públicos pela ampliação e melhoria dos serviços oferecidos.

Diante da morosidade estatal em garantir esses direitos fundamentais, as famílias precisam adotar estratégias eficazes para assegurar o atendimento adequado de seus filhos. O primeiro passo consiste em documentar minuciosamente todos os casos de negligência, registrando formalmente os pedidos negados e os períodos em filas de espera. Paralelamente, é fundamental acionar a via administrativa, protocolizando exigências junto às secretarias municipais de saúde e conselhos municipais dos direitos da pessoa com deficiência. Quando essas medidas não surtem efeito, a judicialização, seja por meio de ações individuais ou coletivas, tem se mostrado um caminho eficaz para obtenção de liminares que garantam o atendimento imediato. A união com coletivos e associações especializadas, como a Reviravolta Autista e a Autismo & Realidade, pode fornecer suporte jurídico e modelos de petições, fortalecendo a luta por esses direitos.

A demora no atendimento adequado não pode ser vista como mera falha administrativa, mas sim como uma violência institucionalizada que rouba o futuro de milhares de indivíduos. Enquanto o Estado não universaliza a criação de centros de referência e não capacita profissionais em quantidade suficiente, a sociedade civil precisa ocupar espaços de controle social, como os conselhos de saúde, e exigir transparência e responsabilidade dos gestores públicos. Como bem estabelece a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a autonomia é um direito fundamental que não admite negociação – e sua construção exige ação imediata, não promessas para um futuro incerto.

O autismo não espera. A lei não pode esperar. A vida, menos ainda. Essa tríade resume a urgência do tema e a necessidade de ação imediata por parte de todos os atores envolvidos – Estado, sociedade civil, família e Poder Judiciário. Somente com esforços conjuntos e determinados será possível transformar os direitos previstos em lei em realidade concreta no cotidiano das pessoas com autismo e suas famílias, permitindo que desenvolvam todo seu potencial e conquistem a tão almejada autonomia e qualidade de vida.

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